quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Correio virtual para Beto

 

Correio virtual para Beto

(Alberto Heráclito Ferreira)


Salvador, Boca do Rio,

|30.12.| segundo verão de 2020.

 

 

Beto, meu amigo, olá. Como vai você? Espero que bem,

com saúde e alegria serelepes a correrem por teu ser.



Em 2020, ano em que talvez pudéssemos ter alinhado os astros virtuais com os analógicos, protocolos alheios não foram favoráveis a um encontro presencial entre nós.

Escrevo estas linhas endereçadas a ti para reavivar a amizade. Escrevo, apesar dos pesares que nos rondam de bem perto, das baforadas nefastas da necropolítica b.R.asuca-mundi, das pílulas neoliberais que nos fazem engolir à força, dos vírus também letais, como o C19, que nos rastreiam e infectam à revelia de cada um de nós.

Por esses dias, revi um de teus vídeos, o do poema falado com teu sotaque, nas modulações graves que constituem a tua voz: “O noturno da tarde quando veio” (do livro Mamãe mamífera), exemplar de um lirismo rarefeito, daqueles que exalam e escapam de algum lugar estético indefinido, aptos a inebriar os sentidos. Aroma que só pode ser sentido por dentro dos textos e que quase já não há, nem mesmo nas páginas mais badaladas e premiadas.

Neste quase findo ano (um ano quase), Beto, tenho mergulhado nas tuas palavras virtuais, aquelas espalhadas pela rede, na esperança de me (re)impregnar de humanidade, de me molhar nas sete ondas que contam as simplicidades da vida e que nos sacodem, marola/caldo, com o intuito de conhecer o fundo, o interior, o lugar que pulsa a partir da existência de nossos parentes quase invisíveis, as pessoas que sobem e descem a Ladeira dos Galés, que entram e saem dos casarios localizados no entorno do Largo dos Paranhos, que caminham nas horas tortas ao longo da rua das Pitangueiras, que percorrem a pé, sob sol a pino, as avenidas que levam ao Dique do Tororó, que carregam o dia nas costas e deitam seus corpos no frescor das noites baianas, em leitos possíveis, nem sempre horizontais.

Quanto mais leio/ouço a sinfonia formada em tuas letras insurgentes, Beto, mais aprendo a escutar seres e coisas que não falam, a fruir as danças diuturnas de subsistência/resistência, o movimento das gentes nossas e tão estrangeiras. Apreendo modos de sentir os outros ainda descolados de meus eus.

E, daí até aqui, chego a um ponto que tenho tentado vivenciar com maior nível de intuição possível, Beto, como a experimentar meus próprios remédios, em meio aos ritos de bruxa/curandeira/xamã que estão perdidos em nós, quem sabe adormecidos entre nossas células. Cada dia me sei/sinto em espaço vazio, a fazer tour nos ecos/ocos de mim, deliberadamente. Acordo, durmo, sonho a serviço de práticas de esvaziamento, de faxina mesmo, imbuída das limpezas necessárias, para retirar o sem sentido, a insistência em preencher todos os cantos. Fins de ano intensificam esse labor.

Desde que mamãe se encantou tenho recebido e lido muitas cartas. Ela, que adorava escrever para os nossos familiares, agora usa a pena dos passarinhos e o lume de estrelas como instrumentos de comunicação. Não raro, durante o dia, um beija-flor azul.verde se apodera do meu campo de visão, sempre nas horas oportunas em que estou na área de serviço, lavando louça ou roupa. A nano.ave mensageira esvoaça palavras nítidas, esperançadas, banhadas de luz do sol, alegres e rápidas como o bater frenético de suas asas. À noite, posso decifrar um pouco da letra difícil de mamãe, em meio as constelações que vejo a partir do mesmo retângulo limitado que ainda assim me permite mirar o céu e os recados dela. Mamãe me conta de papai e de nossos ancestrais. Nesses pontos de luz não sei se leio bem. Não conheço todo o idioma novo de mamãe, talvez chamado eternidade.

Tenho bebido um pouco do MA (sem o R, que mora aqui, em meu quintal, e só o tenho visto ao longe, nesses 365 dias de um ano bissexto), ideograma do qual te falei na carta passada (*). Meus olhos tem lido, em fragmentos, um pouco de palavra/filosofia selvagem, oferecida por Ailton Krenak, como a me fazer apta a Ayahuasca que sou, bebida e cálice. Outro dia, passarinhos pintaram minha face, reivindicaram minhas veias marrons/vermelhas, meu sangue afroindígena, como a protestar meus olhos fechados, minhas tranças nativas.

 


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Não sei aí, no seu lado soteropolitano, Beto, mas, aqui, no quadrante da Boca do Rio, parece que vivemos os dias sem pandemia, a não ser a do consumo e a da praia proibida, porém, ocupada. As vendas continuam em alta por cá: desde o vendedor de picolé, do peixeiro, aos carros do gás e do ovo, que passam quase todo dia na minha rua. As máscaras são vendidas por ambulantes ao custo de cinco reais. São fashions e enfeitam mais o queixo e o pescoço do que protegem a boca e o nariz. O comércio se renova: fecha um estabelecimento, abrem dois e assim seguem os dias, com o tempo contado pela velha e única sinaleira do bairro. A antiga vila de pescadores continua pescando as noites e tratando os dias como se não houvesse nenhum perigo no (m)ar.

Termino esta missiva, amigo, com votos de dias melhores ou ao menos dias mesclados da real metáfora da vida, legível, a mesma que salta da tua viva grandeza humana e literária, para se espalhar por eras, livros e gentes.

Um abraço e até breve!


Andréa Mascarenhas


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(*) Link para a primeira carta - http://arquivosimpertinentes.blogspot.com/2020/01/carta-para-um-amigo-ainda-virtual.html

(1 e 2) Fotos: acervo particular da autora.

(3) Imagem / frame do vídeo - https://www.youtube.com/watch?v=MRxiHIIY8yI

 

 

 

 

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