sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Carta para um amigo ainda virtual




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Carta para um amigo ainda virtual
Para Alberto Heráclito Ferreira


Salvador, Boca do Rio,
verão de 2020.

Caríssimo Beto, saudações.


Escrevo esta carta do modo mais próximo que sou capaz de lembrar, quando de um tempo em que escrevia, de próprio punho, para uma amiga em Aracaju, laudas e laudas de muita saudade. Escrevo também porque, ao ler as cartas que você e Kátia Borges trocaram publicamente esses dias, me veio nostalgia boa e inspiração.

Minha mãe escrevia muito para a família que deixou em Alagoas. Ela começava as cartas mais ou menos assim: “escrevo estas mal traçadas linhas para saber notícias tuas, ao mesmo tempo em que te conto as minhas”. Quando chegava ao pé da folha de papel fininho, daqueles comprados em bloco, ela escrevia assim: “vire a página, mas não vire o coração”.

Eu aqui te escrevendo uma carta, Beto, com vistas a selar uma amizade virtual, mas que pode se tornar pessoal/presencial, e não consigo me desvencilhar das lembranças que me remetem a minha mãe, que se foi há poucos meses. O jeito é encarar, de frente, o que, talvez, não tenha conseguido fazer, plenamente, ao longo da minha existência junto com ela. Vamos falar da velhice, um tema muito caro pra mim.

Quando estamos na mais tenra idade, a velhice não tem nada de mais. Caminhamos lado a lado com ela e a encaramos com a maior naturalidade que nos é possível – entre a infância e a adolescência.

Quando adultos, a velhice praticamente some das nossas vistas e não precisamos fazer esforço algum. Sabemos da sua presença, sorrimos educadamente para ela e até a ajudamos quando nos pede. Não raro, a sequência desses atos é o completo esquecimento e a falta de reflexão sobre a matéria.

Pouco vemos idosos na cidade, sobretudo nos horários de grande movimento. Tirando as exceções, não estão nas propagandas espalhadas pela urbe. Não aparecem nos cartazes, nem nas capas de revistas, nem nas manchetes de jornais. Não estão nas peças de teatro, nem nas exposições dos museus. Na Internet, geralmente não são o foco dos algoritmos nas Redes Sociais, nem nos vídeos, nem nos blogs, fotos, selfies. Quase não aparecem nos filmes comerciais ou naqueles mais badalados. Quando estão nas Universidades… (melhor não entrar por esta via). Algum turismo tem por foco os que estão já aposentados. Aparece idoso, com frequência, nos telejornais, quando se noticia alguma vítima de golpe. Na TV, têm rareado artistas de mais idade e talento consagrado. Aprendi com minha mãe o nome de muitos famosos, artistas de novela, que bem podiam continuar atuando.

Nos ônibus coletivos, é mais comum observar a presença das pessoas mais velhas no meio da manhã ou da tarde. E dá bem para imaginar o por quê da escolha por esses horários para a locomoção delas: podem viajar sentadas. Nos demais horários podemos flagrar outras pessoas, de menor idade e sem necessidades especiais, ocupando os assentos reservados. Você, Beto, assim como eu, já deve ter escutado de algum idoso, viajando em pé, a triste alegação: - “Não, minha filha, não precisa se levantar não. Pode ficar. Não se preocupe. Já vou descer no próximo ponto”. Difícil é ver alguém se levantar, mesmo assim, e fazer questão de ceder o lugar. Talvez em Brotas, bairro de seu convívio, seja diferente. Será?

Volto para a história de minha mãe que, por tabela, não se separa da minha própria, para constatar que não planejei exemplarmente a velhice dela. Fato é que nunca admiti, para mim mesma, Beto, que ela havia chegado na idade avançada. É terrível, mas cremos e nos apegamos à ideia tola de que nossos pais não envelhecem e que vão viver para sempre. Vivia dizendo que ela já era idosa para as pessoas com quem conversava sobre ela. Nessas ocasiões, fazia questão de ressaltar a importância incomensurável dela em minha vida, que sem ela não seria quem sou – enquanto pessoa, mãe e profissional. Sem ela não teria feito nada além da faculdade. Sem dúvida, não estaria no trabalho em que estou, não teria dormido até o cansaço passar, não teria criado bem os meus filhos [ela os criou mais do que eu!], não teria viajado a trabalho, não teria orientado bem os meus alunos, não teria pesquisado, não teria experimentado a escrita literária, não teria sonhado e concretizado. Não teria…, não teria nada…

Foram 48 anos de convivência, Beto. Imagine! E esse tempo não foi o bastante para que eu me acostumasse à ideia de que ela tinha entrado em outra condição, não mais de mãe e avó que sempre foi, para mim e meus filhos.

83 anos de luta, Beto. Assim foram os dias e noites de mamãe. E, no fim, não me dei conta de que, eu-filha, tinha que ter me tornado outra pessoa, sido mais mãe do que filha de minha mãe, ter tido mais atenção com ela, ter notado os parcos sinais que ela espalhava por nossa casa, dado mais conforto, aliviado muito mais do que eu aliviei a vida dela, conversado mais, fofocado mais, compartilhado mais sorrisos com ela.

A velhice de minha mãe me nocauteou e de um só golpe. Isso foi no aniversário de 83 anos de Dona Maria, Beto, dezembro de 2018, no dia que ela ficou doente. E nesse mesmo dia descobri minha cegueira existencial enquanto filha, minha incompetência perceptiva irremediável, minha surdez aguda diante dos poucos silêncios dela, minha falta de traquejo com a vida de quem me deu vida e me deu tudo. Por uma tenebrosa coincidência, tive 9 meses para cuidar dela...

Desculpe o desabafo, caríssimo. É que nas cartas se escondem correntezas ideais onde as palavras podem se soltar e até se afogar, como essas que endereço a você por vias tortas. Dizem que a escrita pode ser curativa, mas não tenho certezas.

Não sei se existem selos para cartas virtuais. Se sim, essa vai com um sinete rarefeito e furta-cor, em que você, Beto, poderá ler, em alto-relevo, minhas iniciais: AM. De trás pra frente, as duas letras formam um ideograma oriental que representa espaço, intervalo, vazio. Coincidentemente, são as primeiras letras da palavra amizade, valor que já cultivo por sua pessoa. Amizade e espaço para me perceber/preencher, eis o que faço voar a partir desta carta.

Um abraço, Beto, e obrigada por me convidar a escrever pra você e por esta interlocução inusitada e tão necessária.
Até breve!

Andréa Mascarenhas



P.S.:


carta.da.carta: poema

escrevo
minha mãe
eu aqui
quando
quando
pouco
nos ônibus
volto
foram
83
a velhice
desculpe
não sei
um abraço
até breve



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(1) Cartão elaborado a partir de imagem pública disponível no site Canva.