lembrei
de uma bailarina. história que passou por mim, sorrateira. nasceu no
circo, Anabele. vida era sinônimo de circo. não conheceu outras
alegrias, só a da fantasia diária. acordava entre tules, meias tipo
arrastão, sapatilhas que um dia tiveram brilho de cetim. ofício passado
de mãe pra filha, hoje registrado na última foto amarelecida, torta,
posta contra o espelho. sua mãe, Anaelis, poderia atravessar aquela
barreira de espaço e tempo a qualquer hora: fugira anos atrás por
motivos desconhecidos. no presente, quando tudo ia bem, o trabalho
acompanhava a mudança: cidade a cidade (as vezes repetidas), animais
alimentados, pagamento minguado, mas em dia. poucas novidades, apesar da
aparente impressão de que a cada nova paragem algo inusitado poderia
surpreender a todos. Anabele sempre confiava: algum dia poderia ser
surpreendida. aos quase 20 anos a tristeza foi a causa da quebra de
rotina não só em sua vida. encontraram dois cavalos e o único leão do
circo brutalmente mortos, àquela manhã. notícias assim correm rápido: da
boca aos ouvidos e destes para o jornal e rádios da região. sem
esclarecimentos, o público minguava a cada tentativa de espetáculo. alvo
de um afã de loucura, Anabele foi convocada para ser a atração
principal das próximas noites: corda bamba sem redes... nunca um número
daqueles foi sequer cogitado. passou a tarde trancada, apenas com a
pequena janela aberta. cortina se balançava ao passar da brisa. uma
borboleta furta-cor arriscou um pouso em meio ao balanço do paninho
trêmulo. em plena vertical alçou voo para a árvore em frente. escalou
folhas, galhos e enfrentou outros ventos. de volta à janela, Anabele
acompanhou de perto o matiz daquelas asas e não se surpreendeu com novo
voo, não antes de um instante de encantamento mútuo. por um momento,
esqueceu o desafio quase mortal que a aguardava. vestiu-se para uma
ocasião especial como nunca ocorrera. os companheiros de circo notaram
os detalhes não costumeiros que Anabele adicionara ao seu traje. a
bailarina se dirigiu para o mastro e venceu a distância até o topo sem
demonstrar o que se passava em seu íntimo. cumpriu todos os chamados do
mestre de cerimônia, o dono do circo, em função de chamar a atenção do
pequeno público que ali se encontrava para ver a façanha de Anabele,
número sequer ensaiado. os pensamentos do mestre eram um só turbilhão:
com aquela performance nunca antes arriscada quem sabe nos próximos dias
a normalidade voltaria a reinar no circo. a borboleta da tarde voltou à
cena: voava nos pensamentos da bailarina, que seguiu seu equilíbrio
interior e, quase sem perceber, cumpriu o percurso desprotegido entre os
mastros principais. arriscou-se em horizonte abissal, pois só via a
rota vertical da borboleta. desceu em meio aos aplausos. a euforia
desproporcionalmente maior do que o número de presentes serviu de manto à
sua passagem de volta aos bastidores do circo. o mestre não pode
interferir, uma vez que o andamento da ação foi melhor do que esperava. o
escuro da noite foi seu cúmplice no último espetáculo de sua vida
circense. em sua curta história, mais uma vez a fuga era caminho. ao
final de cinco quarteirões a luz de um letreiro iluminou sua figura.
bateu à porta de um antigo e ainda elegante teatro e foi recebida por um
senhor. gravata borboleta, suspensórios e um sim como resposta.
Anabele: primeira bailarina e professora do balé escola do Theatro d’
Aramis que, àquela manhã, havia enterrado sua grande mestra: Anaelis...
28/02/2012
[Andréa do Nascimento Mascarenhas Silva]
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(1) FONTE DA FOTO - http://meme.yahoo.com/tina20/p/zGxmcaG/
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