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Carta para um amigo ainda virtual
Para Alberto Heráclito Ferreira
Salvador,
Boca do Rio,
verão
de 2020.
Caríssimo Beto, saudações.
Escrevo esta carta do modo mais próximo que sou capaz de lembrar,
quando de um tempo em que escrevia, de próprio punho, para uma amiga
em Aracaju, laudas e laudas de muita saudade. Escrevo também porque,
ao ler as cartas que você e Kátia Borges trocaram publicamente
esses dias, me veio nostalgia boa e inspiração.
Minha mãe escrevia muito para a família que deixou em Alagoas. Ela
começava as cartas mais ou menos assim: “escrevo estas mal
traçadas linhas para saber notícias tuas, ao mesmo tempo em que te
conto as minhas”. Quando chegava ao pé da folha de papel fininho,
daqueles comprados em bloco, ela escrevia assim: “vire a página,
mas não vire o coração”.
Eu aqui te escrevendo uma carta, Beto, com vistas a selar uma
amizade virtual, mas que pode se tornar pessoal/presencial, e não
consigo me desvencilhar das lembranças que me remetem a minha mãe,
que se foi há poucos meses. O jeito é encarar, de frente, o que,
talvez, não tenha conseguido fazer, plenamente, ao longo da minha
existência junto com ela. Vamos falar da velhice, um tema muito caro
pra mim.
Quando estamos na mais tenra idade, a velhice não tem nada de mais.
Caminhamos lado a lado com ela e a encaramos com a maior naturalidade
que nos é possível – entre a infância e a adolescência.
Quando adultos, a velhice praticamente some das nossas vistas e não
precisamos fazer esforço algum. Sabemos da sua presença, sorrimos
educadamente para ela e até a ajudamos quando nos pede. Não raro, a
sequência desses atos é o completo esquecimento e a falta de
reflexão sobre a matéria.
Pouco vemos idosos na cidade, sobretudo nos horários de grande
movimento. Tirando as exceções, não estão nas propagandas
espalhadas pela urbe. Não aparecem nos cartazes, nem nas capas de
revistas, nem nas manchetes de jornais. Não estão nas peças de
teatro, nem nas exposições dos museus. Na Internet, geralmente não
são o foco dos algoritmos nas Redes Sociais, nem nos vídeos, nem
nos blogs, fotos, selfies. Quase não aparecem nos
filmes comerciais ou naqueles mais badalados. Quando estão nas
Universidades… (melhor não entrar por esta via). Algum turismo tem
por foco os que estão já aposentados. Aparece idoso, com
frequência, nos telejornais, quando se noticia alguma vítima de
golpe. Na TV, têm rareado artistas de mais idade e talento
consagrado. Aprendi com minha mãe o nome de muitos famosos, artistas
de novela, que bem podiam continuar atuando.
Nos ônibus coletivos, é mais comum observar a presença das
pessoas mais velhas no meio da manhã ou da tarde. E dá bem para
imaginar o por quê da escolha por esses horários para a locomoção
delas: podem viajar sentadas. Nos demais horários podemos flagrar
outras pessoas, de menor idade e sem necessidades especiais, ocupando
os assentos reservados. Você, Beto, assim como eu, já deve ter
escutado de algum idoso, viajando em pé, a triste alegação: -
“Não, minha filha, não precisa se levantar não. Pode ficar. Não
se preocupe. Já vou descer no próximo ponto”. Difícil é ver
alguém se levantar, mesmo assim, e fazer questão de ceder o lugar.
Talvez em Brotas, bairro de seu convívio, seja diferente. Será?
Volto para a história de minha mãe que, por tabela, não se separa
da minha própria, para constatar que não planejei exemplarmente a
velhice dela. Fato é que nunca admiti, para mim mesma, Beto, que ela
havia chegado na idade avançada. É terrível, mas cremos e nos
apegamos à ideia tola de que nossos pais não envelhecem e que vão
viver para sempre. Vivia dizendo que ela já era idosa para as
pessoas com quem conversava sobre ela. Nessas ocasiões, fazia
questão de ressaltar a importância incomensurável dela em minha
vida, que sem ela não seria quem sou – enquanto pessoa, mãe e
profissional. Sem ela não teria feito nada além da faculdade. Sem
dúvida, não estaria no trabalho em que estou, não teria dormido
até o cansaço passar, não teria criado bem os meus filhos [ela os
criou mais do que eu!], não teria viajado a trabalho, não teria
orientado bem os meus alunos, não teria pesquisado, não teria
experimentado a escrita literária, não teria sonhado e
concretizado. Não teria…, não teria nada…
Foram 48 anos de convivência, Beto. Imagine! E esse tempo não foi
o bastante para que eu me acostumasse à ideia de que ela tinha
entrado em outra condição, não mais de mãe e avó que sempre foi,
para mim e meus filhos.
83 anos de luta, Beto. Assim foram os dias e noites de mamãe. E, no
fim, não me dei conta de que, eu-filha, tinha que ter me tornado
outra pessoa, sido mais mãe do que filha de minha mãe, ter tido
mais atenção com ela, ter notado os parcos sinais que ela espalhava
por nossa casa, dado mais conforto, aliviado muito mais do que eu
aliviei a vida dela, conversado mais, fofocado mais, compartilhado
mais sorrisos com ela.
A velhice de minha mãe me nocauteou e de um só golpe. Isso foi no
aniversário de 83 anos de Dona Maria, Beto, dezembro de 2018, no dia
que ela ficou doente. E nesse mesmo dia descobri minha cegueira
existencial enquanto filha, minha incompetência perceptiva
irremediável, minha surdez aguda diante dos poucos silêncios dela,
minha falta de traquejo com a vida de quem me deu vida e me deu tudo.
Por uma tenebrosa coincidência, tive 9 meses para cuidar dela...
Desculpe o desabafo, caríssimo. É que nas cartas se escondem
correntezas ideais onde as palavras podem se soltar e até se afogar,
como essas que endereço a você por vias tortas. Dizem que a escrita
pode ser curativa, mas não tenho certezas.
Não sei se existem selos para cartas virtuais. Se sim, essa vai com
um sinete rarefeito e furta-cor, em que você, Beto, poderá ler, em
alto-relevo, minhas iniciais: AM. De trás pra frente, as duas letras
formam um ideograma oriental que representa espaço, intervalo,
vazio. Coincidentemente, são as primeiras letras da palavra amizade,
valor que já cultivo por sua pessoa. Amizade e espaço para me
perceber/preencher, eis o que faço voar a partir desta carta.
Um abraço, Beto, e obrigada por me convidar a escrever pra você e
por esta interlocução inusitada e tão necessária.
Até breve!
Andréa Mascarenhas
P.S.:
carta.da.carta: poema
escrevo
minha
mãe
eu
aqui
quando
quando
pouco
nos
ônibus
volto
foram
83
a
velhice
desculpe
não
sei
um
abraço
até
breve
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(1) Cartão elaborado a partir de imagem pública disponível no site Canva.